sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Kojiki - A tradução continua! [Capítulo 1 - 2]

Muitos anos passaram desde a minha primeira tentativa de tradução do Kojiki para o Bungakuu. Consciente do sucesso da tradução resolvi continuar o processo esperando proximamente publicar a tradução completa. Depois de olhar para a minha primeira contribuição apercebi-me que tinha dado na altura poucos elementos sobre a “origem” dessa tradução francesa. Como nunca é tarde demais, o texto original dessa tradução foi escrita por um francês anónimo que publicou no seu website enciclopédico http://japonline.free.fr/Encyclo-accueil.htm uma versão resumida do Kojiki em flash. Apesar de alguns defeitos de escrita e de uma ocultação excessiva de algumas partes da narração julgo que essa retransmissão do livro é suficientemente elucidativa e simplificada para transmitir o conteúdo da obra de forma eficiente e moderna. Em algumas circunstâncias a fonetização das palavras japonesas poderá fugir dos critérios escritos que cada um de nós utiliza individualmente. Peço como tal alguma tolerância para com essa transcrição. Por outro lado tentei desta vez inserir o meu cunho pessoal com mais insistência para compensar aquilo que considero os pontos fracos do texto aqui traduzido. Considero que o resumo aqui publicado é suficientemente abrangente para transcrever as subtilezas que fornecerão elementos de reflexão sobre a cultura japonesa e a sua ligação à obra. Para acompanhar o texto resolvi também integrar imagens que ajudarão certamente a uma melhor visualização do universo por vezes muito abstracto dos kamis japoneses.

Continuação do capítulo 1


A multiplicação dos Kamis na Terra.
Os dois recém-casados não se ficaram por aqui. Deram nascença a todos os Kamis que se encontram agora na Terra: Kami das árvores, das montanhas, das pedras, das plantas e das flores, dos mares, dos lagos e dos rios.

O seu primeiro filho foi Owatatsumi o senhor dos oceanos. Depois, Izanami deu nascença a Kamihaya Akitsu Hiko que controla as terras e Haya Akitsu Hime que controla a superfície do mar. Múltiplos Kamis surgiram pouco depois.
Izanami deu então nascença ao Kami do fogo, Kagutsuchi no Kami. O parto acaba porém tragicamente: Izanami morre queimada pela incandescência da sua progenitura.
Antes de morrer, da sua boca surgem Kanayama biko e Kanayama hime, os deuses do metal,  assim como Haniyasu hiko e Haniyasu hime, deuses da terra.

Izanami juntou-se ao Reino das Sombras. Assim nasceu, pela primeira vez, a morte e as suas consequências: a decomposição e o luto.
Enraivecido, Izanagi decapita o recém-nascido com a sua espada Totsuka no Tsurugi. Do sangue de Kagutsuchi nascem novos kamis para cada gota derramada.
Izanagi tinha perdido o gosto de viver. Sem a sua esposa a vida já não fazia sentido. Resolveu então ir à sua procura. Afinal de contas, ele sempre era um deus.



Questionou todos os homens e animais que cruzava no seu caminho se esses conheciam algum meio para encontrar a sua falecida esposa. Uma serpente indicou-lhe o caminho, a entrada para o Inferno (Yomi) situada na província de Izumo.
À medida que Izanagi penetrava nas trevas do inferno a luz desaparecia. Ouviu gritos e gemidos que teriam aterrorizado qualquer homem mas a sua determinação era imutável. Caminhou muito tempo na obscuridade absoluta. Enquanto o desespero se apoderava do seu coração, Izanagi ouviu finalmente a voz da sua amada.
Não a pode ver, mas consegue ouvir a sua voz distintamente. Izanami está feliz por ver o seu esposo ter iniciado tão grande caminhada para se juntar a ela.
-“Vim para te levar comigo”
Era porém tarde demais pois Izanami já tinha comido os alimentos do Reino das Sombras o que tornava impossível o seu regresso à superfície.
-“Vou ainda assim suplicar os deuses deste Reino para que esses me permitam regressar contigo!” disse. “Espera por mim aqui o tempo necessário, promete não seguir-me e que não saíras daqui!”.
Izanagi assim prometeu…

Capítulo 2
 E assim aguardou até que a espera se tornou insustentável. Impaciente, resolveu quebrar a promessa. Caminhou outra vez na escuridão. Parecia-lhe ouvir a voz da sua esposa implorar-lhe para que não continuasse mas a tentação era demasiado forte, ele tinha que a ver nem que por um breve instante.
Aproximou-se de Izanami enquanto essa lhe implorava para ele ir embora. Retirou um dos dentes do seu pente para fazer uma tocha. Através da clareza, viu por um instante a beleza intacta de Inazami decompor-se e apodrecer perante os seus olhos. A sua carne era devorada pelos vermes.
Aterrorizado, Izanagi resolveu fugir do inferno. Demónios corriam atrás dele enquanto a sua esposa gritava “Traidor! Quebraste a tua promessa!”. Os próprios guardiões do inferno perseguiam-no.
Uma vez fora Izanagi pegou imediatamente num rochedo para selar a porta do inferno. 
O nascimento de Susano-o e Amaterasu
Izanagi errou até à ilha de Kyushu. Próximo do Rio das Laranjeiras, ficou fascinado pela clareza da água. A pureza do rio poderia lavar-lhe dos seus males e ajudar -lhe esquecer os seus problemas.
Retirou a sua roupa e tomou banho. 14 Abluções precisamente.
Vinte e seis novos Kamis nasceram deste banho, uns da sua roupa outros das partes do corpo que ele limpou.
Ao limpar o seu olho direito deu nascença a Tsukiyomi, o kami da Lua. Do seu nariz nasceu Susano-o, o kami impetuoso das tormentas. Finalmente, do seu olho esquerdo nasceu Amaterasu, a kami do sol. Desde esse momento a vida seria dividida entre noite e dia.
Izanagi, fascinado pela beleza de Amaterasu, pediu-lhe para essa erguer-se e iluminar o céu para o bem de todos.


 Por outro lado o seu irmão Susano-o era muito mais inclinado para actos violentos. Constantemente agressivo, procurando sempre criar o caos à sua volta, a sua passagem pelos mares, o seu reino, provoca terríveis tempestades. A sua imprevisibilidade oscilava entre a letargia de uma brisa e a fúria de um tufão.  
Provocar inundações, destruir diques, arrozais, navios, tudo não passavam aos seus olhos de brincadeiras feitas aos seres humanos.



A ira de Amaterasu
Susano-o era também capaz de afecto… Mas apenas para a sua irmã Amaterasu. Um dia resolveu visitá-la no céu.
Os kamis que moravam na via láctea, assustados pela perspectiva de serem visitados por um  kami tão turbulento, visitaram Amaterasu e pediram-lhe para essa livrar-se do seu irmão. Os kamis conheciam bem Susano-o e os seus frequentes estragos que eles tinham que resolver. Por outro lado Amaterasu também não apreciava muito o seu irmão que ela considerava brutal e grosseiro.
A Kami do Sol pegou no seu arco divino de madeira lacrada vermelha e de duas aljavas recheadas de flechas. Colocou-se em posição frente à porta do Reino Divino com a firma intenção de impedir a ascensão de Susano-o.   
Um rio separa o Reino da Terra e o Reino dos Deuses e no qual um arco-íris faz ofício de ponte. Susano-o parou na margem oposta ao Reino dos Deuses. Muito educado, cumprimentou a sua irmã que se encontrava na outra margem.  Amaterasu perguntou-lhe o que ele vinha fazer e quais eram as suas intenções.
O Kami da tempestade respondeu com sinceridade que apenas vinha para a visitar. Começou a rir de forma tonitruante e ensurdecedora.
 Surpreendido com a frieza de Amaterasu, pediu-lhe para ambos quebrarem as suas armas em sinal de boa fé.
Susano-o entregou-lhe a sua espada que ela quebrou em 3 pedaços.
Amaterasu entregou-lhe o seu arco e flechas que ele igualmente quebrou.
Os dois irmãos estavam finalmente juntos. Amaterasu não podia deixar porém de desconfiar do seu irmão. Ela dificilmente conseguia lidar com a sua rudeza e falta de educação. Infelizmente esse acabou por ser a causa de numerosos problemas e a sua presença no Reino Divino não foi tolerada por muito mais tempo.
Amaterasu acabaria por sofrer as consequências.
Das suas numerosas actividades, a costura era uma das preferidas de Amaterasu. Um dia, rodeada das suas serventes e em plena ocupação, o tecto abriu-se numa larga fissura. Os destroços caiam abundantemente enquanto as costureiras fugiam apavoradas. Um potro degolado caiu da fissura enquanto o terrível riso de Susano-o ecoava na sala. Estava muito satisfeito por ter pregado uma boa partida à sua irmã.



As vibrações do seu riso faziam cair cada vez mais destroços que feriam algumas serventes enquanto outras gritavam aterrorizadas pela visão do sangue do potro. Amaterasu estava também ferida no dedo. Enraivecida, encontrou-se com os outros kamis para exigir a expulsão de Susano-o. Os outros deuses demonstraram indiferença. Susano-o não lhes tinha feito nada e sendo ele um kami a sua presença era perfeitamente justificável. O seu irmão não era problema deles.
Amaterasu humilhada refugiou-se numa caverna selando a porta. Sem a sua presença o mundo entrou numa era de escuridão. Sem calor, apenas a luz das estrelas e do Kami da lua dissipavam parcialmente o escuro.
Os outros kamis começaram também eles a sofrer as piadas de mau gosto do Susano-o. Pouco tempo depois todos os kamis se juntaram para suplicar Amaterasu que essa regressasse e expulsasse o seu irmão. Com o orgulho ferido a kami do Sol não respondeu aos apelos.
O grande concelho dos kamis, composto pelos cinco primeiros casais, resolveu convocar todos os deuses. Milhões apresentaram-se perante o concelho.


 Ainda assim, apesar de reunidos, nenhum deles conseguiu encontrar uma ideia que conseguisse convencer Amaterasu. Omoikane, o kami “cheio de ideias”, propôs utilizar o canto dos galos para que esses invocassem a kami do Sol. Entusiasmados com a proposta, milhões de galos foram colocados em todos os toriis. Amaterasu manteve-se imperturbável e todos os kamis concluíram que os galos eram criaturas vaidosas por pensarem ser os responsáveis do surgimento do sol.
O kami cheio de ideias encontrou um novo estratagema. Amaterasu sendo uma mulher, esta seria inclinada para o ciúme e a inveja como qualquer outra mulher. Omoikane propôs então provocar o ciúme da Amaterasu. Todos os kamis concordaram com a proposta. Foram buscar uma árvore gigante que enfeitaram com pedras preciosas fabricadas por Tamanoya.

O kami que trabalhava na forja, Ishikori Dome, criou um espelho gigante com painéis de outro chamado Yata no kagami. O todo foi colocado frente à caverna onde se encontrava Amaterasu.
Os deuses encadearam milhares de luzes cuja luz se reflectia no espelho e nas jóias. Todos começaram a rir-se e a celebrar essa nova fonte de luz. Aclamavam essa nova divindade solar. Uzume, kami da dança, convidou todos os deuses para um baile histérico. 

Amaterasu sai da gruta surpreendida pelo barulho. Espreitou lá fora e apreciou o espectáculo. Amaterasu não tardou em ficar louca de inveja. Saiu da sua gruta para ver aquela que lhe estava a tirar o protagonismo.
 Enquanto se aproximava parecia-lhe ver a mais bela das mulheres até aperceber-se que não passava do seu próprio reflexo no gigantesco espelho Yata no kagami. Enganada, Amaterasu quis regressar para a sua caverna. Era sem contar com o kami poderoso Tajikarao que destruiu a entrada da gruta e selou-a com a corda Shirikumi. Foi nessa ocasião que nasceu a tradição das shimenawa.
Amaterasu sentia-se perdida e desapontada mas pouco depois apercebeu-se que todos precisavam dela. Feliz outra vez, a kami do Sol pegou no espelho Yata no kagami e nas jóias Magatama agradecendo a oferenda.


tradução de Matthieu Rego

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Mitologia Japonesa - Tradução do Kojiki Parte 1

A tradução efectuada do Kojiki (visto não existir em português) a partir do francês. Traduzir o Kojiki, esse considerado "livro nacional, guia do povo, jóia literária do Japão",  com o primeiro capítulo esperando poder traduzir os restantes.


Capítulo 1
Céu e terra não correspondiam a mais do que um. Tudo se resumia a uma massa disforme, que não abrigava vida e que flutuava no espaço como o faria uma alforreca no oceano. Com o tempo, a parte considerada como pura separou-se e veio a formar o céu, o que sobrava uniu-se em baixo numa massa viscosa: a Terra.

Ainda sem forma, o planeta deslocava-se lentamente no ether. Nenhum astro iluminava o céu para alem das longínquas estrelas cintilantes. Os primeiros Kamis (deuses) aparecerem espontaneamente no céu ignorando a sua proveniência.
No início apenas existiam três: Amano Minakanushi no Mikoto ("Augusto Kami do centro do universo" criador da estrela do norte), Takami Musubi no Mikoto (Augusto Kami criador das maravilhas) e Kami Musubi no Mikoto (O kami criador dos tesouros).

Mas as suas existências foram breves e desapareceram sem deixar rasto.
Depois, de um bambu nasceram dois novos kamis que conheceram um destino em todo semelhante aos três primeiros.

Novos Kamis apareceram. Sete casais mais exactamente. Muito depressa, apenas subsistiam seis, assim que os dois primeiros Kamis desapareceram por sua vez. Os casais sobreviventes decidiram instalar-se na via láctea e puseram-se logo ao trabalho, tentando criar um novo universo.

Compostos, ao último casal foi dada a tarefa mais complexa: fixar e dar forma a massa viscosa chamada Terra.

Assim, Izanagi (o macho que recebe) e Izanami (a femea que convida) dirigiram-se para a Terra equipados como uma lança de ouro e de pedras preciosas chamada Ameno Nuboko.

Os dois kamis incarnavam a perfeição física: Izanagi o barbudo de cabelo muito comprido e dotado de uma força admirável. Izanami é a mais bela mulher que se possa ver: traços delicados, seu rosto branco e na sua silhueta a elegância perfeita.
Izanagi mergulha a sua lança na Terra e começa a amassar com força. Mas tirando a sua lança uma grande gota formou uma pequena ilha no limite da agua. (Diz-se que é a ilha de Onogoro).

Os dois kamis surpresos observaram longamente a sua criação:
Seres começam a ocupar a ilha e os dois observam a sua reprodução.
Sendo puros ignoravam tudo acerca da arte do "amor".
Decidiram então acomodar-se na ilha.

Izanami vivia feliz: a sua criação era maravilhosa e ela ria. Izanagi também ria e isso acabou por despertar a atenção dos outros Kamis da via láctea.

Aproximaram-se para ver o que acontecia e encontraram-se com Izanagi e Izanami sentados numa pedra. Como poderia uma simples pedra provocar tanta alegria. Os Kamis perturbados voltaram para seus lugares respectivos.

Izanami ja não via Izanagi da mesma maneira: ela fascinada pela sua beleza, presença e força. Ela pediu-o então em casamento. Ele aceitou sem hesitar.

Tudo poderia ter sido perfeito, mas o nascimento do seu primeiro filho trouxe os primeiros problemas. Esse tinha nascido sob a forma de um horrível verme. Os dois abandonaram a abominação numa barca feita de canas de bambu.
A segunda criança foi igualmente monstruosa.

Decidiram então interrogar os Kamis. Para tal, eles deveriam voltar para o reino implantado na via láctea: Takamanohara.

O casal mais antigo explicou-lhe que o seu casamento era a fonte de infelicidade: Com efeito, apenas Izanagi podia pedir em casamento a deusa e não o contrario.
Os dois subsistiram então no lugar dos Deuses.

Porém os dois encontravam-se muito infelizes e já não se falavam.
O tempo passou e Izanami recordou a época maravilhosa do início do seu amor.

Ela correu então para regressar a sua pequena ilha. Izanagi viu-a e considerou-a tão bela e radiosa que não tardou a segui-la.

O pequeno pedaço de terra era agora vestido de um luxuoso manto de verdura. Izanagi sentia-se renascer do seu amor reencontrado e pediu Izanami em casamento.
Fez-lhe um grande sorriso e os dois voltaram a casar.

A maldição foi levantada. Os seus primeiros filhos foram primeiro ilhas: A primeira Awaji, a segunda Shikoku, Oki, Kyûshû, Tsuhima, Honshû e Hokkaido. Seis novas ilhas nasceram a seguir, seguidas por mais de 3000 pequenas ilhas.
Foi assim que nasceu o Japão chamado na altura Wakoku.


Tradução de Matthieu Rego

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Princípios da Estratégia segundo Miyamoto Musashi


"Aquele que deseja aprender o Caminho da estratégia segundo a minha escola deve observar os princípios a seguir:

1 - Pensar sempre de modo honesto e sincero;
2 - Treinar dentro dos princípios o verdadeiro Caminho;
3 - Conhecer outras formas de arte, não só a militar;
4 - Entender os caminhos que regem as outras profissões;
5 - Saber avaliar vantagens e desvantagens em cada situação;
6 - Ter a capacidade de enxergar a verdade em fatos e coisas;
7- Perceber com a mente o que não pode ser visto pelos olhos;
8- Estar sempre  atento aos detalhes;
9- Não fazer nada que seja inútil.

Tenha esses princípios gerais sempre em mente quando estiver treinando no Caminho da estratégia. Para se tornar um mestre nessa arte, contudo, será necessário uma visão ampla para reconhecer o verdadeiro Caminho. Aquele que dominar a estratégia poderá vencer sozinho 20 ou 30 inimigos juntos. Primeiro é preciso treinar com disciplina e dedicação, sempre à procura do aprimoramento, que o levará a vencer com as mãos por golpes certeiros, com os olhos  por meio da visão mais profunda, com o corpo - que estará flexível e obediente a qualquer comando, resultado de constante treinamento -,  com o espírito fortalecido pelo contato com os princípios do verdadeiro Caminho. "


Shinmen Musashi

Fonte: trecho retirado do O Livro dos cinco Anéis " Gorin No Sho" 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

OS MÁRTIRES DA ERA MEIJI

Pe. Robert Flynn, SJ

Esta história aconteceu há cerca de 140 anos atrás (1). É uma história tocante e entusiasmante, e merece ser melhor conhecida. No tempo do nascimento do Japão moderno, 153 cristãos de Nagasaki foram exilados para a cidade montanhosa de Tsuwano no oeste do Japão. Lá, no Passo da Virgem, eles sofreram, e 36 deles morreram. Os líderes sobreviventes nos deixaram um testemunho ocular.

Descobertos os cristãos escondidos (2)

Tokugawa Yoshinobu
Quando o regime Tokugawa (3) começou a ruir e o Japão foi forçosamente aberto por Perry (4) em 1854, o Cristianismo ainda era ilegal. O duro edito de 240 anos antes ainda vigorava, e nenhum japonês podia ser conhecido como cristão, sob pena de morte.
Algumas das nações estrangeiras que estabeleceram relações diplomáticas com o Japão – França, Inglaterra, Estados Unidos – pediram ao governo que concedesse um lugar de culto para as famílias dos diplomatas estrangeiros. Esta permissão foi dada, e então a primeira igreja católica foi construída pelos franceses em 1865, em Oura (parte de Nagasaki) (5). Centenas de japoneses assistiram curiosamente a construção do “templo francês”, mas no dia de sua solene dedicação ninguém ousou ser visto por perto.
Comodoro Perry

Cerca de um mês depois, em 17 de março de 1865, teve lugar um inesquecível incidente. Pe. Petitjean (6), missionário estrangeiro de Paris, estava em oração na obscura igreja, quando uns poucos japoneses entraram silenciosamente. O líder deles cautelosamente perguntou: “O senhor reza para Santa Maria?” O padre apontou para a imagem da Santíssima Virgem. Os visitantes trocaram silenciosos olhares de satisfação, e o líder disse: “Padre, nós temos o mesmo coração que o senhor”.
Eles tinham vindo de Urakami, um distrito de Nagasaki do outro lado do pico de uma montanha. E eles anunciaram que lá havia vários outros cristãos escondidos como eles!
O mundo inteiro ficou assustado e maravilhado: estes cristãos, vivendo sob interdito e na sombra da morte, mantiveram a fé por 240 anos, sem nenhum padre, sem nenhum sacramento, sem nenhuma Bíblia! Nenhuma página da história cristã pode se comparar a esta na fidelidade e na perseverança.
Oura Tenshudou antes da bomba atômica


(1) - N.T. O texto original diz 120, dado o ano em que foi escrito.
(2) - N.T. Cristãos escondidos ou Kakure Kirishitan.
(3) - N.T. O xogunato, espécie de governo militar. O últimoshogun, Tokugawa Yoshinobu, governou até 1867.
(4) - N.T. Comodoro Matthew Calbraith Perry, da marinha dos EUA.
(5) - N.T. A igreja é chamada de Oura Tenshudou (lit: Templo do Senhor do Céu de Oura). Tenshu ou Senhor do Céu foi a forma católica tradicional japonesa de se chamar a Deus.
(6) - N.T. Pe. Bernard-Thadée Petitjean, das Missões Estrangeiras de Paris, apontado como Vigário Apostólico do Japão em 11/05/1866 e ordenado bispo em 21/10 do mesmo ano.

Pe. Petitjean
Um problema

Todo o mundo cristão estava jubiloso pelas notícias da descoberta. Mas no Japão havia consternação e um problema. O que o governo japonês faria com esses cristãos?
Num dilema, o governador de Nagasaki enviou a Edo (depois Tokyo) um pedido por direcionamentos. Enquanto isso, ele pôs 68 cristãos na prisão. Era 15 de julho de 1867.
Sob inspeção e tortura na prisão, 21 abandonaram e 47 permaneceram firmes na fé. Outros cristãos foram presos, aumentando o número para 83. Alguns deles foram postos sob tortura tão brutal que todos fraquejaram e apostataram pela palavra, se não pelo coração. Todos menos um: um velho camponês, Sen’emon Takagi (7). Sen’emon, prevendo a perseguição vindoura, já tinha mandado seus dois filhos para a Malásia, exortando-os a aprofundarem seu conhecimento na sua Fé e a voltarem ao Japão como sacerdotes.
Impelido pelos inspetores para seguir os outros em sua “conversão de Cristo” (8), ele retrucou: “Diante de Deus e diante da alma que Deus me deu, isto seria a maior de todas as desgraças. Eu seguirei a Deus, quer o siga com 100 companheiros, quer o siga sozinho”.
O chefe dos inspetores respeitou tal devoção e disse: “Não te exortarei mais. Tens o espírito de um verdadeiro samurai: ser fiel ao próprio senhor até o fim, se preciso sozinho. Podes voltar para casa”.
Quando Sen'emon voltou, os outros lhe perguntaram foi capaz de suportar os tormentos: “Eu sabia que não era forte o suficiente por mim mesmo, então eu rezei ao Espírito Santo”, respondeu.
Logo, os outros que fraquejaram encontraram força na oração com humildade. Eles foram voluntariamente até o magistrado e se anunciaram como cristãos uma vez mais. Foi-lhes mandado esperar a decisão que estava por vir de Edo.
O jovem Imperador Meiji
O falido regime Tokugawa finalmente entrou em colapso, depois de 264 anos. O último shogun foi afastado em novembro de 1867. A restauração do poder ao Imperador foi alcançada. A Era Meiji oficialmente começou em dezembro de 1867.
O novo governo imediatamente ficou diante do problema dos cristãos escondidos. Os competentes e jovens revolucionários, que conquistaram esta restauração, habilidosamente reviveram a antiga e tradicional religião do Shinto (o caminho dos deuses, xintoísmo) como base para a reverência ao Imperador, do qual se ensinava ser descendente e representante dos deuses. Até o budismo perdeu o apoio do governo, e o cristianismo permanecia duramente proibido como até então. Acrescente-se a isso um profundo ressentimento pela intrusão dos estrangeiros, junto com um desejo de modernização e de aceitação pelo mundo ocidental. E agora, mais e mais cristãos escondidos começavam a aparecer. O governo estava num dilema.
Duas soluções foram oferecidas. Uma era: “O banimento ainda está em vigor. Ponham todos os cristãos à espada!” A outra solução era de tolerância, e foi sugerida pelo lorde de Tsuwano, que era o chefe de departamento da Secretaria de Assuntos Religiosos. Ele disse: “Deixem-nos como estão. Estes poucos cristãos de Nagasaki não merecem que sacrifiquemos nossa reputação como um povo civilizado”.
O Imperador Meiji em trajes ocidentais

(7) - N.T. No Japão, normalmente se dá o nome da família primeiro. Como o original inverteu, deixei como está. Portanto, Takagi é o nome da família e Sen'emon é o nome próprio. Em japonês, seu nome é 高木仙右衛門.
(8) - N.T. Ou seja, converter-se do cristianismo para o xintoísmo.

A decisão do governo

A primeira das soluções sugeridas era muito drástica, mas o governo também ainda não estava pronto para admitir a solução da tolerância. Uma solução de compromisso foi então proposta; esta, também, por um acadêmico de Tsuwano (uma cidade pequena, mas importante, nas montanhas do Oeste do Japão). Ele disse: "Convertamo-los ao Shinto. É a antiga religião do Japão e fundamento de nossa história. Estes cristãos são pobres camponeses. Se nós os ensinarmos, tenho certeza de que podemos persuadi-los".
Então o governo decidiu por esta política, e teve início a “reeducação “ dos cristãos de Nagasaki. Eles eram reunidos para uma série de leituras que tinham como objetivo persuadi-los a abandonar a Cristo e adotar o Shinto.
Os cristãos ouviram respeitosamente as palestras, mas se negaram inquebrantavelmente a deixar a sua fé. "Nós mantivemos este coração não obstante grandes provações por 250 anos. Vós pensais que por causa de vossas palestras poderemos trair nossos corações?"

Dispersão para Tsuwano

O próximo passo foi mais drástico. Decidiu-se que aqueles cristãos obstinados deveriam ser arrancados de seus lares e dispersados pelo país.
Eventualmente, 3500 cristãos foram forçados para o exílio. Embarcaram em pequenos grupos para cerca de 20 lugares no Japão: de Kagoshima, no extremo sul de Kyushu, até Nagoya (entre Tokyo e Osaka).  Para a pequena Tsuwano também foi enviado um grupo, apesar de seu tamanho, porque sua antiga universidade era famosa por seus religiosos acadêmicos.
Em 10 de julho de 1868, 28 cristãos (incluindo Sen'emon Takagi e Jinsaburo Moriyama (9)) foram exilados para Tsuwano, onde foram confinados num templo abandonado (Korin-ji). Lá eles foram sujeitos a uma lavagem cerebral, e a severos cortes quanto à alimentação e à vestimenta. Na fraqueza que resultou, seis abandonaram, mas os outros permaneceram inabaláveis.
Falhando a persuasão, as autoridades, guiadas por um jovem administrador de nome Morioka, passaram para métodos mais rígidos. Um deles consistia na prisão em jaulas de cerca de 1m³.

(9) - N.T. Seu nome em japonês é 守山甚三郎.

O primeiro mártir

Estas jaulas infames eram caixas sólidas, de cerca de 1m³, tendo um lado com barras. Os prisioneiros eram postos nela e expostos no lado montanhoso ao frio, à fome e ao isolamento.
Um dos primeiros a ser confinados na jaula foi Wasaburo, de 27 anos. Ele ficou exposto por 20 dias, até suas forças desaparecerem e ele morrer no dia 9 de outubro de 1868. Ele foi o primeiro mártir de Tsuwano.

Yasutaro e Nossa Senhora

No pleno inverno daquele ano, Yasutaro, de 30 anos, foi posto na jaula e sujeito à lavagem cerebral dia e noite por três dias. Foi uma tarefa vã; ele permaneceu firme.
Os outros cristãos estavam preocupados com ele. Sempre quieto, mas alegre e muito generoso, ele costumava partilhar seu escasso alimento com os outros e tomava para si os afazeres mais desagradáveis. Numa gélida noite, Sen'emon e Jinsaburo conseguiram escapar pela porta da prisão e foram furtivamente ao encontro de Yasutaro em sua jaula. Apesar do frio montanhoso do pleno inverno, ele parecia estar tão contente como sempre.
“Não te sentes sozinho e congelando?”, perguntaram-lhe.
“Ó, não, não”, respondeu. “Quase toda noite uma bela senhora vem e me fala coisas maravilhosas. Às vezes ela permanece até a alvorada. Ela está vestida de azul e se parece com a imagem de Santa Maria em nossa igreja de Nagasaki... Mas, por favor, não falem nada disso enquanto eu estiver vivo”.
Imagem da Virgem Maria aparecendo a Yasutaro na jaula
“Yasutaro, se nós pudermos entrar em contato com a tua mãe, o que queres que digamos a ela?”
“Por favor, dizei-lhe que estou feliz por morrer aqui. Eu estou na cruz com nosso Senhor Jesus”.
Sen'emon e Jinsaburo voltaram para o templo para relatar aos outros cristãos, os quais se encheram de alegria e nova coragem pela estranha e maravilhosa notícia. Eles agradeceram a Deus por mandar a Santíssima Virgem para consolá-los.
Uma semana depois, os dois líderes saíram novamente, mas apenas para encontrar a jaula enterrada na neve profunda e Yasutaro morto dentro. Era 22 de janeiro de 1869.

“O Passo da Virgem”

O templo-prisão onde os cristãos foram confinados, e perto do qual estes mártires morreram, estava próximo a uma passagem montanhosa nos arredores de Tsuwano. Em japonês o lugar é chamado de Otome Toge. Em português: “O Passo da Virgem”.
A história remonta a centenas de anos atrás, quando a jovem filha de um lorde deste distrito foi prometida a um jovem príncipe em Kyoto, que, porém, a rejeitou. Em sua desolação, ela vagou por esta passagem e nunca mais foi vista novamente. Em sua honra, o lugar ficou sendo chamado de Passo da Virgem.
O nome, portanto, antecede o martírio em séculos. Mas no ponto de vista das misteriosas aparições para Yasutaro, “o Passo da Virgem” parece ter sido providencialmente cristianizado – é de fato um nome belo e apropriado.

Jinsaburo Moriyama

Jinsaburo Moriyama (Moriyama, o nome da família, vem primeiro em japonês) era um dos líderes dos cristãos aprisionados. Os inquisidores, conduzidos por Morioka, constantemente o exortavam a deixar sua fé cristã e a adorar o ancestral deus-sol. “Nós adoramos o sol que nós vemos”, disse Morioka, “o sol que ilumina nosso caminho e clareia o mundo. Por que adoras a um deus que não podes ver? Deixa desta tolice e segue o Caminho dos Deuses”.
Depois de ouvir por horas este tipo de discurso, Jinsaburo disse: “Senhor, eu tentarei explicar. Supõe que és enviado para longe a negócios. Terminado o trabalho, começas a voltar para casa, mas o dia vai declinando e logo escurece. Na pobre estrada do campo não consegues enxergar três passos à frente. Supõe que um camponês vê teu apuro, acende uma lanterna e diz: ‘Aqui, usa esta lanterna para iluminar teu caminho’. Com a luz da lanterna chegas seguro em casa. Senhor, tu pões a lanterna num pedestal e a ela ofereces teus agradecimentos cheios de veneração?... Não deverias, na verdade, agradecer ao bom camponês que te deu a lanterna? Tu, senhor, dizes-me para adorar o sol que ilumina o nosso caminho. Contudo, nós cristãos oferecemos nossos agradecimentos cheios de veneração ao Deus que fez o sol e o pôs no céu para iluminar o mundo. A ele nós adoramos e louvamos”.
Morioka, furioso com a lógica irrefutável da defesa da fé de Jinsaburo, terminou o interrogatório imediatamente e lançou-o novamente na prisão.
Mais provações estavam guardadas para o dia seguinte.

Provação pelo gelo e pelo fogo

No dia seguinte, Sen'emon e Jinsaburo foram chamados mais uma vez para uma sessão de leitura.
Agora, perto do templo-prisão havia um lago. Ele ainda hoje pode ser visto, mas há 100 anos era umas três vezes maior que agora, que o templo foi derrubado e o lago preenchido.
Naquele inverno, como nevou ininterruptamente por mais de um mês, o lago estava coberto de neve e gelo.
Depois da sessão de lavagem cerebral daquele dia, Morioka jogou os dois líderes fiéis no lago gelado. Tremendo e ofegando, os dois começaram a rezar o “Pai nosso” e o “Meu Deus, eu vos ofereço...”. Os algozes derramaram baldes de água gelada sobre suas cabeças. Finalmente, quando o mais velho dos dois estava a ponto de morrer, eles os puxaram para fora pelos cabelos com umas varas com gancho. Então, com zombaria: “Deveis estar com frio”, lançaram-nos sobre uma fogueira. Posteriormente, diria Jinsaburo, “aquela provação pelo gelo e pelo fogo foi de longe a pior de todas”.
Quase mortos, foram postos novamente na prisão.

Companheiros no exílio

No terceiro ano da Era Meiji (1870), a dispersão dos Cristãos de Urakami foi efetivada. Homens, mulheres e crianças foram forçosamente exilados para diferentes partes do país. 125 foram mandados para Tsuwano, para juntar-se aos que tinham sido mandados dois anos antes. Entre estes estava a irmã mais velha de Jinsaburo, Matsu , e seu irmão mais novo, Yujiro .
Para dar espaço ao novo grupo no velho templo-prisão, Sen'emon e seus companheiros foram transferidos para uma prisão diferente. Por conta disso, Jinsaburo raciocinou: "As autoridades provavelmente dirão aos recém-chegados que todos nós apostatamos, fazendo-os perder a coragem". Assim, com saliva e carvão ele fez uma tinta e escreveu uma nota num pedaço de bambu: "Nós não abandonamos nossa fé em Cristo. Vós, também, sede fiéis, por favor". Ele, então, escondeu a nota na latrina.
Com toda certeza, quando os novos exilados chegaram, as autoridades os exortaram: "Os outros abandonaram sua fé e agora estão vivendo confortavelmente. Agireis sabiamente seguindo o exemplo deles". Isto desanimou os outros, até Matsu encontrar a nota de Jinsaburo e seu desânimo transformar-se em alegria. 
Cada família era chamada por vez e investigada. A fome logo se abateu sobre eles. Kiyojiro, um menino de três anos, foi a primeira vítima do novo grupo. Ele morreu em 24 de janeiro de 1871. Em novembro, mais 24 sucumbiram.

Uma luta de vontades

Mencionamos várias vezes o nome de Morioka. Da mesma idade que o cristão Jinsaburo, a este samurai foi confiada a tarefa de fazer os cristãos em Tsuwano abandonarem sua fé. Era seu primeiro encargo e nisto ele pôs toda a sua energia. A prova de fogo seria a "conversão" de Jinsaburo, rebento de uma importante família de cristãos de Urakami, com a responsabilidade da liderança recebida como herança. Estes dois, o determinado samurai e o cristão resoluto, foram lançados um contra o outro numa luta de vontades que duraria cinco anos.
Tendo falhado na tentativa de enfraquecer sua vontade na provação pelo fogo e pela água, Morioka examinou qual seria o ponto fraco de Jinsaburo, e quando o novo grupo chegou ele pensou tê-lo encontrado: o irmão mais novo de Jinsaburo, Yujiro, de 14 anos. Tendo os ataques diretos a Jinsaburo apenas fortalecido a resolução dos cristãos, ele decidiu atacar indiretamente, tomando vantagem da profunda afeição que Jinsaburo tinha por seu irmão mais novo.
Yujiro estava com medo da dor. Ele costumava dizer ao seu irmão: "Por favor, reza por mim. Se eles começarem a me torturar, tenho certeza que deixarei Cristo. Eu não sei como sofrer".
"Não te preocupes. Nós todos rezaremos. Tu ficarás bem, Yujiro. Tu suportarás", seu irmão o encorajou.

O martírio de Yujiro

Um dia,  início de novembro, Morioka deixou Yujiro despido e amarrado numa cruz nas margens do caminho. Os aldeões vinham, cutucavam-no com varas de bambu e zombavam dele por ser um tolo cristão. "Agora eu partilho dos sofrimentos dele", Yujiro gloriava-se com um sorriso orgulhoso.
A cada insulto e exortação para "abandonar Cristo", ele bravamente respondia com uma só palavra: "Não!"
"Eu serei derrotado por um menino deste tamanho?", pensou Morioka. E então, depois de um dia na cruz, ele tirou Yujiro para uma tentativa diferente.
Desta vez, Morioka pôs o garoto sentado, no estilo japonês (sobre os pés), sobre um tapete de tiras de bambu. Aí, despido e amarrado a um poste, ele foi impiedosamente flagelado. Várias vezes, choros e gemidos escaparam de seus lábios, mas a sua única resposta era sempre: "Não!" Água gelada do lago foi derramada sobre ele. E ainda: "Não!"
Por duas semanas completas o rapaz suportou o frio, a fome e os açoites. Enfim, seu corpo começou a ficar roxo e o fim parecia próximo. Morioka, contudo, não queria que ele morresse. Ademais (como ele mesmo escreveria anos depois), ele começou a se odiar pelo que estava fazendo: "Que faço eu? Torturando uma criança! Eu sou um samurai? Eu sou um homem?" Então ele entregou o menino de volta à sua irmã mais velha, Matsu, que tentou revivê-lo com o seu próprio calor corporal.
Quando Yujiro acordou nos braços da irmã, viu-a chorando. Disse-lhe: "Perdoa-me, irmã. Eu não queria gemer e chorar, mas não pude evitar a princípio".
"Tudo bem. Deve ter sido terrível demais", disse Matsu.
"No início foi", sussurrou Yujiro, "mas no oitavo dia, quando eu estava rezando com todo o meu coração, eu vi um pardalzinho no telhado do templo. Ele estava chorando, também, e então a mãe-pardal veio e o alimentou e ele parou de chorar. Quando eu vi isto, eu conheci a Deus. Eu pensei: 'Se uma mãe-pardal cuida de seu pequeno pássaro, eu sei que nosso Pai no Céu deve estar cuidando de mim, e que Maria-sama (10) levar-me-á para o céu'".
Então, ao passo em que foi enfraquecendo, ele predisse o retorno seguro de Matsu e Jinsaburo para Nagasaki. "E vós, então, tomareis de conta de crianças pequenas por toda a vossa vida, e tu, irmão mais velho, darás o teu primeiro filho a Deus como sacerdote". Com esta profecia, morreu o garoto, aos 26 de novembro.

(10) - N.T. No Japão utilizam-se sufixos de tratamentos após os nomes. "San", por exemplo, é o comum, com certo respeito. "Sama" (Lê-se 'samá'), utilizado no texto para a Virgem Maria, dá um tom de superioridade, exigência de muito respeito.
A pequena Mori

Naquele ano (1870), 25 morreram no Passo da Virgem. Entre eles estava uma pequena garota de 5 anos. Seu nome era Mori.
A mãe de Mori estava numa pequena prisão-armazém bem perto da prisão principal (exatamente no lugar onde hoje está a Capela Memorial). Nesta prisão, estavam confinadas as mulheres e as crianças, embora fosse permitido que as crianças saíssem para correr.
Numa manhã, a mãe de Mori olhou pela janela para ver o que sua filhinha estava fazendo. Ela viu um dos carcereiros aproximar-se da criança com deliciosos biscoitos japoneses na mão. Mostrando à criança as guloseimas, ele disse: "Aqui, come-os. Estás com muita fome, não? Diz que odeias o Cristo, e poderás tê-los. Aqui, come-os."
"Ó, não. Assim não poderei ir para o Céu. Há biscoitos muito mais gostosos no Céu".

Alguns fracos

A história dos fracos também deve ser contada. Há a recordação de que 54 daqueles cristãos exilados em Tsuwano abandonaram a sua fé. É verdade que na fraqueza da fome ou no terror da tortura, eles podem ter gritado: "Eu desisto", mas mesmo assim sua "conversão" não era plenamente reconhecida: não se lhes permitiu que voltassem para casa. Eles tiveram que permanecer em Tsuwano, onde, contudo, receberam alimento e comida e a permissão para trabalhar na cidade. Eles estavam cobertos de vergonha tanto diante do povo da cidade quando diante dos outros cristãos.
Com o dinheiro que ganhavam eles compravam comida e, embora fosse proibido fazê-lo, ofereciam aos outros cristãos. Mas estes se recusavam, dizendo: "Não podemos comer a comida de traidores de Cristo".
Assim, os que tinham fraquejado curvavam suas cabeças ainda mais baixo e diziam: "Por favor, não penseis assim de nós. Por favor, tomai o alimento. Se não o comerdes, morrereis. Tomai-o e rezai por nós".
Com esta ajuda muitos conseguiram sobreviver.

Liberdade e retorno

O governo central que apoiava o Imperador, o qual tinha adotado o compromisso da política de "reeducação" dos crentes escondidos, não estava a par das medidas extremas tomadas em Tsuwano. Missionários estrangeiros fizeram uma representação e finalmente, em 1871, quando o vice-cônsul britânico queixou-se da barbaridade, uma investigação foi feita e revelou os fatos vergonhosos.
Imediatamente um decreto foi promulgado ordenando a soltura dos cristãos. Enquanto isso, todavia, mais oito cristãos, incluindo quatro crianças, morreram, elevando para 36 o número dos mártires do Passo da Virgem.
Quando o decreto chegou, comida e roupas foram dadas aos cristãos, e em 1872 os que tinham se "convertido" podiam voltar para casa. Como estavam envergonhados em ir, os cristãos fiéis escreveram uma carta ao sacerdote, por seus irmãos e irmãs que tinham caído:
"Padre, não sejas severo com os chamados traidores, pois eles nos ajudaram a todos. Graças ao alimento que nos deram, fomos capazes de sobreviver. Por favor, escuta as confissões deles e absolve-os, nós te rogamos".
Os 54 voltaram para Nagasaki em maio, levando esta carta de intercessão.
Os outros tiveram que ficar em Tsuwano, mas as duras medidas tomadas contra eles foram minoradas e, enfim, um ano depois (1873), foram todos mandados para casa. Antes de irem, Morioka e os outros oficiais convidaram Sen'emon e Jinsaburo para um festivo jantar em sua casa, no qual pediram perdão pela sua crueldade e expressaram sua profunda admiração pela rara manifestação de lealdade samurai que tiveram por Cristo, seu senhor.

Algumas notas

Cabe-nos acrescentar algumas notas à nossa história do Passo da Virgem.
A profecia de Yujiro. Seu irmão e sua irmã mais velhos voltaram para Nagasaki. Matsu viveu até os 98 anos e até o fim de sua vida devotou-se à educação cristã das crianças das ilhas Goto, ao largo da costa. O filho mais velho de Jinsaburo tornou-se sacerdote na diocese de Nagasaki, cumprindo a profecia de seu tio martirizado.
Os filhos de Sen'emon Takagi. Antes de estourar a perseguição, Sen'emon tinha enviado seus dois filhos para um seminário menor na Malásia. Depois elecebeu uma carta em Tsuwano, notificando que seus filhos tinham chegado com segurança, mas que um deles estava vítima de uma febre. Na carta (que ainda existe), o Padre Diretor do seminário exorta a todos a serem cristãos no sofrimento. Ele pediu que eles oferecessem seus sofrimentos como penitência por seus pecados e pelos pecados dos outros, e que nunca odiassem aqueles que os estavam perseguindo. "Deveis rezar por eles. Deveis oferecer vossos sofrimentos por aqueles que vos causam dor".
Quando um dos descendentes dos carcereiros leu a carta, em tempos mais recentes, disse: "Eu nunca soube que a religião cristã era tão bela. Eu nunca soube".
Pedras memoriais. Vários anos depois dos martírios do Passo da Virgem, a família Takagi quis honrar seu antepassado Sen'emon e seus companheiros. Eles talharam 36 pedras de suas próprias montanhas para colocarem os nomes dos mártires na sepultura comum em Sennintsuka (no vale próximo ao Passo da Virgem). Em 1974, quando o prefeito e o povo de Tsuwano tomaram conhecimento deste plano, eles foram ao pároco e disseram: "Padre, nós mesmo queremos tomar estas pedras nos ombros e levá-las ao sepulcro. Queremos fazer penitência pelos erros de nossos antepassados".
Um estranho encontro. No verão de 1918, Jinsaburo, já idoso, recebeu uma carta de ninguém menos que o filho de seu perseguidor, Morioka. Ele disse que tinha se tornado cristão, que tinha entrado numa ordem religiosa e que queria encontrar Jinsaburo em Tsuwano. Ele mesmo comprou a passagem de trem para esta jornada. Quando Jinsaburo chegou, caminharam até o lugar do templo-prisão, e lá Morioka ajoelhou-se na grama, chorando e pedindo: "Por favor, perdoa meu pai pelos pecados dele".
Lágrimas correram dos olhos de Jinsaburo, também, ao abraçar Morioka e dizer: "Que alegria é ver que te tornaste um cristão"! Eles se ajoelharam juntos para agradecer a Deus pelos seus misteriosos dons de salvação.
A Capela de Nossa Senhora. Houve uma pequena bela igreja na cidade desde 1931. Atualmente, é uma réplica do "templo francês" de Nagasaki, o Oura Tenshudo, que foi declarado Patrimônio Nacional. Mas somente a partir de 1951 uma capela foi finalmente construída no Passo da Virgem.
A capela memorial de Santa Maria, construída no local do templo-prisão
A construção desta capela foi a realização de um sonho do Pe. Nebel, SJ, que foi pastor da igreja por vários anos e que depois tomou o nome japonês de Yujiro Okazaki. Em honra dos mártires e da bondade materna de Maria-sama, ele erigiu a Capela Memorial de Maria, no lugar do antigo templo Korin-ji, no Passo da Virgem.
Todo ano, desde então, ocorre o Festival do Passo da Virgem (Otome Toge Matsuri) no dia 3 de maio. Milhares de peregrinos de todo Japão vêm a Tsuwano neste dia e, junto com os oficiais da cidade, caminham em solene e alegre procissão pela cidade, subindo o vale até a Capela Memorial, louvando a Deus pela glória dos mártires e pela guia da Bem-aventurada Senhora.

A história continua

O atual pastor de Tsuwano, o sucessor do Pe. Nebel, tem uma das menores paróquias do Japão, mas pode dizer que talvez seja um dos padres mais ocupados no país. Todo dia, centenas de visitantes, e às vezes milhares, vêm à sua igreja, da cidade até o Passo da Virgem, onde ele conta e reconta a história dos mártires, nunca perdendo seu entusiasmo, vendo a luz do interesse e da admiração nos olhos dos que o escutam.
Um dia um professor de uma universidade veio e contou ao padre: "Padre, eu sempre trago meus melhores alunos aqui. Eu não sou um cristão, mas eu acredito que aqui há uma mensagem para meus alunos. Como professor de uma famosa universidade, sou um homem de sorte, mas como educador, frequentemente me sinto um nada: meus alunos têm boas cabeças e bons corações, mas quando eu lhes pergunto: 'O que pensas em fazer após a graduação?' Eles apenas dizem: 'Não sei'. Eles não tem visão de vida, nada pelo que viver, nada pelo que entregar suas vidas. Aqui, no Passo da Virgem, eles podem ouvir e sentir que apenas há 100 anos atrás aqueles jovens de Nagasaki se dedicaram na fé e agora são honrados pelo mundo inteiro. Eu espero que aqui eles aprendam o significado da dedicação a uma meta".

O pastor diz: "Eu sei por experiência que, na maioria das paróquias do Japão, a evangelização é muito difícil, desencorajadora de partir o coração. Mas não em Tsuwano. Aqui, da manhã até a tarde o povo vem e escuta. Eles vêm ouvir a história dos mártires. Estes mártires foram japoneses comuns, como quaisquer outros. Eles não eram altamente educados, não tinham se convertido após um longo estudo e certa luta. Eram almas simples, almas puras. Estas pessoas fazem um grande apelo à presente geração. Jovens mães que escutam a história de Yujiro lembram os próprios filhos e rezam a Yujiro para que seus meninos cresçam com um coração forte e verdadeiro. Outros pensam em Mori-chan, de 5 anos, e rezam a ela pedindo que ajude no crescimento de suas filhinhas. Aqui em Tsuwano a mensagem se espalha numa centena de maneiras simples e belas".

Num dia de outono uma mãe veio. "Padre, nas férias de verão estive aqui com meu filhinho. Nós ouvimos o que o senhor contou no Passo da Virgem. No fim daquele mês, meu filho foi acometido de febre alta. Ele estava deitado e eu estava ao lado dele. Então ele olhou para mim e disse: 'Mamãe, eu não preciso me preocupar'.
'Claro, você não tem que se preocupar. Eu estou aqui com você'.
'Sim, mamãe, eu sei que estou seguro. Porque a senhora é como a mãe-pardal de que o padre estava falando em Tsuwano quando estivemos lá. Então não preciso me preocupar'."
Ela ficou tão tocada que, logo que seu filho se recuperou, ela voltou para contar ao padre como a história de Yujiro e o pardal ajudaram na recuperação de seu filho.

A magnificência do ambiente montanhês, a fama da antiga cidade com sua herança literária, suas ruas com lanternas, suas águas correntes com carpa dourada, a aura dos mártires, a pompa orante do festival de maio: estas coisas fizeram de Tsuwano e do Passo da Virgem matéria de muitos programas de televisão e de artigos de revista nos anos recentes. E isto, por sua vez, fez aumentar o número de visitantes à cidade e ao santuário.

As telhas têm seu próprio segredinho. Por causa das goteiras, todo o telhado teve que ser substituído. Assim, 1200 telhas foram empilhadas ao pé da estrada íngreme, prontas para serem carregadas. Ao lado delas, material para escrita e um cartaz que dizia:
“Estas telhas são para o telhado da capela. Se você for tão gentil a ponto de carregar pelo menos uma até a capela, você pode usar o material para escrita para escrever seu nome no outro lado da telha e tornar-se parte da capela de Maria-sama”.
Dentro de três dias todas as telhas tinham sido levadas para a capela, com pessoas ocupadas em escrever seus nomes e endereços no outro lado delas.
Um jovem homem estava carregando duas telhas. “Você é muito gentil”, disse o padre, “carregando duas telhas”. O jovem homem voltou-se e apontou para trás: sua namorada estava vindo. “Uma é por ela”, disse ele.
Depois outro foi visto carregando três. “Este tem duas namoradas?”, pensou o padre, e disse: “Estas devem estar pesando”. “Não, padre, não é muito pesado. Elas são por nós três”, respondeu e apontou para sua jovem esposa grávida.

Cartas e mais cartas chegam dos visitantes. Alguns escrevem que estão estudando para se tornarem cristãos. Cristãos que caíram escrevem que começaram a voltar para a Igreja. Alguns casais jovens voltam para se casar em Tsuwano, onde seu romance encontrou uma nova profundidade.
A história dos mártires continua.

Claro, o significado do martírio às vezes foge. “Por que Cristo não ajudou esse povo?” é uma pergunta feita comumente.
Esta é uma graça de que temos necessidade através do exemplo e da intercessão dos mártires: a graça de compreendermos que Ele, que disse: “Não há maior amor do que dar a vida pelo amigo”, não nos pode dar maior graça do que a força para darmos nossas vidas testemunhando nosso amor por Ele. Esta é a graça que Ele deu aos mártires do Passo da Virgem.
Bendito seja seu santo nome!

Pe. Robert M. Flynn, SJ, um jesuíta dos Estados Unidos da América, passou vários anos no Japão como missionário. Ele é bastante conhecido no Japão como o autor de uma série de livros-texto de inglês, ainda hoje usados em mais de 100 escolas, tendo sido editados mais de 40 vezes! Após sua carreira como professor de idioma em colégios jesuítas, ele recebeu o desafiador trabalho de ser pastor em Tsuwano, onde fica o Otome Toge. “Martyrs of the Meiji Era” (originalmente intitulado “Não há amor maior: a história do Passo da Virgem”) é um dos vários livretos que o Pe. Flynn escreveu sobre os mártires da Era Meiji.

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Não pode ser reproduzido em qualquer meio sem permissão. Publicado na web com a permissão do autor.
Traduzido e publicado em português por Luís Augusto Rodrigues Domingues, com permissão concedida em 20/09/2012 pelo sr. Dr. Francis Britto, Ph.D., da Sophia University, do Japão.
Não foram utilizadas as imagens do original, mas outras foram acrescentadas para melhor apresentar alguns detalhes históricos.


Fonte: texto gentilmente compartilhado pelo tradutor Luís Augusto.