Muitos anos passaram desde a minha primeira tentativa de tradução do Kojiki para o Bungakuu. Consciente do sucesso da tradução resolvi continuar o processo esperando proximamente publicar a tradução completa. Depois de olhar para a minha primeira contribuição apercebi-me que tinha dado na altura poucos elementos sobre a “origem” dessa tradução francesa. Como nunca é tarde demais, o texto original dessa tradução foi escrita por um francês anónimo que publicou no seu website enciclopédico http://japonline.free.fr/Encyclo-accueil.htm uma versão resumida do Kojiki em flash. Apesar de alguns defeitos de escrita e de uma ocultação excessiva de algumas partes da narração julgo que essa retransmissão do livro é suficientemente elucidativa e simplificada para transmitir o conteúdo da obra de forma eficiente e moderna. Em algumas circunstâncias a fonetização das palavras japonesas poderá fugir dos critérios escritos que cada um de nós utiliza individualmente. Peço como tal alguma tolerância para com essa transcrição. Por outro lado tentei desta vez inserir o meu cunho pessoal com mais insistência para compensar aquilo que considero os pontos fracos do texto aqui traduzido. Considero que o resumo aqui publicado é suficientemente abrangente para transcrever as subtilezas que fornecerão elementos de reflexão sobre a cultura japonesa e a sua ligação à obra. Para acompanhar o texto resolvi também integrar imagens que ajudarão certamente a uma melhor visualização do universo por vezes muito abstracto dos kamis japoneses.
Continuação do capítulo 1
A multiplicação dos Kamis na Terra.
Os dois recém-casados não se ficaram por aqui. Deram nascença a todos os Kamis que se encontram agora na Terra: Kami das árvores, das montanhas, das pedras, das plantas e das flores, dos mares, dos lagos e dos rios.
O seu primeiro filho foi Owatatsumi o senhor dos oceanos. Depois, Izanami deu nascença a Kamihaya Akitsu Hiko que controla as terras e Haya Akitsu Hime que controla a superfície do mar. Múltiplos Kamis surgiram pouco depois.
Izanami deu então nascença ao Kami do fogo, Kagutsuchi no Kami. O parto acaba porém tragicamente: Izanami morre queimada pela incandescência da sua progenitura.
Antes de morrer, da sua boca surgem Kanayama biko e Kanayama hime, os deuses do metal, assim como Haniyasu hiko e Haniyasu hime, deuses da terra.
Izanami juntou-se ao Reino das Sombras. Assim nasceu, pela primeira vez, a morte e as suas consequências: a decomposição e o luto.
Enraivecido, Izanagi decapita o recém-nascido com a sua espada Totsuka no Tsurugi. Do sangue de Kagutsuchi nascem novos kamis para cada gota derramada.
Izanagi tinha perdido o gosto de viver. Sem a sua esposa a vida já não fazia sentido. Resolveu então ir à sua procura. Afinal de contas, ele sempre era um deus.
Questionou todos os homens e animais que cruzava no seu caminho se esses conheciam algum meio para encontrar a sua falecida esposa. Uma serpente indicou-lhe o caminho, a entrada para o Inferno (Yomi) situada na província de Izumo.
À medida que Izanagi penetrava nas trevas do inferno a luz desaparecia. Ouviu gritos e gemidos que teriam aterrorizado qualquer homem mas a sua determinação era imutável. Caminhou muito tempo na obscuridade absoluta. Enquanto o desespero se apoderava do seu coração, Izanagi ouviu finalmente a voz da sua amada.
Não a pode ver, mas consegue ouvir a sua voz distintamente. Izanami está feliz por ver o seu esposo ter iniciado tão grande caminhada para se juntar a ela.
-“Vim para te levar comigo”
Era porém tarde demais pois Izanami já tinha comido os alimentos do Reino das Sombras o que tornava impossível o seu regresso à superfície.
-“Vou ainda assim suplicar os deuses deste Reino para que esses me permitam regressar contigo!” disse. “Espera por mim aqui o tempo necessário, promete não seguir-me e que não saíras daqui!”.
Izanagi assim prometeu…
Capítulo 2
E assim aguardou até que a espera se tornou insustentável. Impaciente, resolveu quebrar a promessa. Caminhou outra vez na escuridão. Parecia-lhe ouvir a voz da sua esposa implorar-lhe para que não continuasse mas a tentação era demasiado forte, ele tinha que a ver nem que por um breve instante.
Aproximou-se de Izanami enquanto essa lhe implorava para ele ir embora. Retirou um dos dentes do seu pente para fazer uma tocha. Através da clareza, viu por um instante a beleza intacta de Inazami decompor-se e apodrecer perante os seus olhos. A sua carne era devorada pelos vermes.
Aterrorizado, Izanagi resolveu fugir do inferno. Demónios corriam atrás dele enquanto a sua esposa gritava “Traidor! Quebraste a tua promessa!”. Os próprios guardiões do inferno perseguiam-no.
Uma vez fora Izanagi pegou imediatamente num rochedo para selar a porta do inferno.
O nascimento de Susano-o e Amaterasu
Izanagi errou até à ilha de Kyushu. Próximo do Rio das Laranjeiras, ficou fascinado pela clareza da água. A pureza do rio poderia lavar-lhe dos seus males e ajudar -lhe esquecer os seus problemas.
Retirou a sua roupa e tomou banho. 14 Abluções precisamente.
Vinte e seis novos Kamis nasceram deste banho, uns da sua roupa outros das partes do corpo que ele limpou.
Izanagi, fascinado pela beleza de Amaterasu, pediu-lhe para essa erguer-se e iluminar o céu para o bem de todos.
Por outro lado o seu irmão Susano-o era muito mais inclinado para actos violentos. Constantemente agressivo, procurando sempre criar o caos à sua volta, a sua passagem pelos mares, o seu reino, provoca terríveis tempestades. A sua imprevisibilidade oscilava entre a letargia de uma brisa e a fúria de um tufão.
Provocar inundações, destruir diques, arrozais, navios, tudo não passavam aos seus olhos de brincadeiras feitas aos seres humanos.
A ira de Amaterasu
Susano-o era também capaz de afecto… Mas apenas para a sua irmã Amaterasu. Um dia resolveu visitá-la no céu.
Os kamis que moravam na via láctea, assustados pela perspectiva de serem visitados por um kami tão turbulento, visitaram Amaterasu e pediram-lhe para essa livrar-se do seu irmão. Os kamis conheciam bem Susano-o e os seus frequentes estragos que eles tinham que resolver. Por outro lado Amaterasu também não apreciava muito o seu irmão que ela considerava brutal e grosseiro.
A Kami do Sol pegou no seu arco divino de madeira lacrada vermelha e de duas aljavas recheadas de flechas. Colocou-se em posição frente à porta do Reino Divino com a firma intenção de impedir a ascensão de Susano-o.
Um rio separa o Reino da Terra e o Reino dos Deuses e no qual um arco-íris faz ofício de ponte. Susano-o parou na margem oposta ao Reino dos Deuses. Muito educado, cumprimentou a sua irmã que se encontrava na outra margem. Amaterasu perguntou-lhe o que ele vinha fazer e quais eram as suas intenções.
O Kami da tempestade respondeu com sinceridade que apenas vinha para a visitar. Começou a rir de forma tonitruante e ensurdecedora.
Surpreendido com a frieza de Amaterasu, pediu-lhe para ambos quebrarem as suas armas em sinal de boa fé.
Susano-o entregou-lhe a sua espada que ela quebrou em 3 pedaços.
Amaterasu entregou-lhe o seu arco e flechas que ele igualmente quebrou.
Os dois irmãos estavam finalmente juntos. Amaterasu não podia deixar porém de desconfiar do seu irmão. Ela dificilmente conseguia lidar com a sua rudeza e falta de educação. Infelizmente esse acabou por ser a causa de numerosos problemas e a sua presença no Reino Divino não foi tolerada por muito mais tempo.
Amaterasu acabaria por sofrer as consequências.
Das suas numerosas actividades, a costura era uma das preferidas de Amaterasu. Um dia, rodeada das suas serventes e em plena ocupação, o tecto abriu-se numa larga fissura. Os destroços caiam abundantemente enquanto as costureiras fugiam apavoradas. Um potro degolado caiu da fissura enquanto o terrível riso de Susano-o ecoava na sala. Estava muito satisfeito por ter pregado uma boa partida à sua irmã.
As vibrações do seu riso faziam cair cada vez mais destroços que feriam algumas serventes enquanto outras gritavam aterrorizadas pela visão do sangue do potro. Amaterasu estava também ferida no dedo. Enraivecida, encontrou-se com os outros kamis para exigir a expulsão de Susano-o. Os outros deuses demonstraram indiferença. Susano-o não lhes tinha feito nada e sendo ele um kami a sua presença era perfeitamente justificável. O seu irmão não era problema deles.
Amaterasu humilhada refugiou-se numa caverna selando a porta. Sem a sua presença o mundo entrou numa era de escuridão. Sem calor, apenas a luz das estrelas e do Kami da lua dissipavam parcialmente o escuro.
Os outros kamis começaram também eles a sofrer as piadas de mau gosto do Susano-o. Pouco tempo depois todos os kamis se juntaram para suplicar Amaterasu que essa regressasse e expulsasse o seu irmão. Com o orgulho ferido a kami do Sol não respondeu aos apelos.
O grande concelho dos kamis, composto pelos cinco primeiros casais, resolveu convocar todos os deuses. Milhões apresentaram-se perante o concelho.
Ainda assim, apesar de reunidos, nenhum deles conseguiu encontrar uma ideia que conseguisse convencer Amaterasu. Omoikane, o kami “cheio de ideias”, propôs utilizar o canto dos galos para que esses invocassem a kami do Sol. Entusiasmados com a proposta, milhões de galos foram colocados em todos os toriis. Amaterasu manteve-se imperturbável e todos os kamis concluíram que os galos eram criaturas vaidosas por pensarem ser os responsáveis do surgimento do sol.
O kami cheio de ideias encontrou um novo estratagema. Amaterasu sendo uma mulher, esta seria inclinada para o ciúme e a inveja como qualquer outra mulher. Omoikane propôs então provocar o ciúme da Amaterasu. Todos os kamis concordaram com a proposta. Foram buscar uma árvore gigante que enfeitaram com pedras preciosas fabricadas por Tamanoya.
O kami que trabalhava na forja, Ishikori Dome, criou um espelho gigante com painéis de outro chamado Yata no kagami. O todo foi colocado frente à caverna onde se encontrava Amaterasu.
Os deuses encadearam milhares de luzes cuja luz se reflectia no espelho e nas jóias. Todos começaram a rir-se e a celebrar essa nova fonte de luz. Aclamavam essa nova divindade solar. Uzume, kami da dança, convidou todos os deuses para um baile histérico.
Amaterasu sai da gruta surpreendida pelo barulho. Espreitou lá fora e apreciou o espectáculo. Amaterasu não tardou em ficar louca de inveja. Saiu da sua gruta para ver aquela que lhe estava a tirar o protagonismo.
Enquanto se aproximava parecia-lhe ver a mais bela das mulheres até aperceber-se que não passava do seu próprio reflexo no gigantesco espelho Yata no kagami. Enganada, Amaterasu quis regressar para a sua caverna. Era sem contar com o kami poderoso Tajikarao que destruiu a entrada da gruta e selou-a com a corda Shirikumi. Foi nessa ocasião que nasceu a tradição das shimenawa.
Amaterasu sentia-se perdida e desapontada mas pouco depois apercebeu-se que todos precisavam dela. Feliz outra vez, a kami do Sol pegou no espelho Yata no kagami e nas jóias Magatama agradecendo a oferenda.
tradução de Matthieu Rego
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